O erro de entender as pessoas (só) por suas personas públicas

Vida pública, vida privada e vida secreta - porque a gente dá tanta importância para a primeira se os maiores insights estão nas outras duas?

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Rodrigo

Como a gente veio parar aqui?

Era uma vez uma fase na internet em que a gente acompanhava nossos amigos e conhecidos e postava pedacinhos do nosso dia a dia, às vezes com edições e filtros bonitinhos para dar um charme. 

De lá para cá as coisas mudaram muito. A introdução de conceitos como seguidores (substituindo contatos ou amigos e passando uma ideia de hierarquia) e likes (uma quantificação da validação do outro) fez algumas pessoas descobrirem que gostavam muito desses numerozinhos e que estariam dispostas a fazer grandes investimentos de tempo, dinheiro e eventualmente, coisas horrorosas para aumentá-los. As plataformas então decidiram mostrar mais dessas pessoas e organizações que gostam desses numerinhos para todos, deixando-as cada vez mais visíveis e conhecidas, com diversas consequências que nos trouxeram para onde estamos. 

Zuckerberg introduz o like, 10 de março de 2009, Representação artística. Via Quora

Quando a gente passou a chamar as “redes sociais” de “mídias sociais” lá pelos anos 2010s fomos visionários. “Redes” dava a ideia de comunidade, de troca, de indivíduos interconectados e uma comunicação de todos para todos, conexões mais “ponto a ponto” - ainda existe, mas não é mais a dinâmica dominante faz tempo. Mídia sugere um contexto em que poucos produzem e muitos consomem (mais “ponto a multiponto”, no jargão de telecom) e e cada vez mais é o que acontece - especialmente considerando que o modelo de consumo cada vez mais pende, em praticamente todas as plataformas, para o recomendado pelos algoritmos ao invés de baseado em quem você de fato segue. De acordo com um estudo feito durante 10 anos, 85% das visualizações vão para apenas 3% dos canais no YouTube. Cada vez mais um abismo separa criadores de consumidores.

via Pew Research Center

Adam, fala para a galera onde foi parar o conteúdo de amigos e pessoas que você segue? 

Entendeu agora por que o Instagram agora mostra os números de compartilhamentos nos posts?

Personas públicas não são o self de ninguém; nós que postamos somos todos “Ciros Bottinis” de nós mesmos

Como essa mudança da fase “redes” para a fase ”mídias” foi gradual, muita gente ainda não se deu conta. Tem várias explicações para esse esvaziamento do espaço público digital e elas já foram discutidas em outras edições, mas resumindo: para muitas pessoas, as plataformas são cada vez mais um grande fumódromo do qual muitos de nós, apesar de intoxicados, não podemos nos dar ao luxo de sair porque precisamos socializar, ser vistos e fazer negócios. 

É seguro assumir que a maioria dos conteúdos públicos (não restritos a seguidores) e perenes (que não desaparecem depois de um tempo como os stories) hoje em dia são direta ou indiretamente comerciais - ou vendem algo, ou querem criar audiência para eventualmente vender algo - como consequência, são inerentemente performáticos e focados em simular proximidade ou espontaneidade - exatamente como as interações parassociais de outros canais muito mais antigos. Não que haja nada de errado com isso!

A credibilidade dos vendedores é crucial para o sucesso desse filão, segundo Sérgio Santos, professor de marketing da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). "Tem gente que assiste isso como se visse um amigo fazendo uma recomendação", afirma.

Estamos falando de influenciadores? De live commerce, talvez? Não, dos vendedores de infomerciais do 1406 de 15 anos atrás. Para quem não tem repertório, tudo é novidade.

O problema mesmo é acreditar que análise de dados públicos das plataformas é capaz de entregar coisas espetaculosas como “o pulso da cultura” (como se não existisse cultura fora das plataformas!), “entendimento profundo do ser humano” (como se a nossa existência fosse reduzida à nossa presença online pública!) e usar essas análises como critério primário (ou pior ainda, único) para tomar decisões sobre clientes, mesmo com um corpo de dados cada vez mais restrito (plataformas fechando raspagem e menos gente postando publicamente), sujo (por robôs, fakes e conteúdo produzido por IA) e performático (guiado por interesses comerciais e criação de relações parasociais) - uma versão digital de leitura de borra do café, se usada com esses fins! Não tem IA mágica que vai fazer os dados de origem contornarem uma limitação inerente. Será que isso acontece porque os grandes números de posts, likes e menções dão uma ilusão de representatividade e relevância? Será que é porque é mais fácil de medir do que coisas que são na verdade bem mais importantes? Achar que “ser culturalmente relevante” é pular de meme em meme, além de muito reducionista, é premiar a exceção e ignorar a regra, ainda mais se experiência e produto não estiverem muito bem resolvidos.

Um lembrete de que o mundo de marketing é uma bolha que precisa ser furada intencionalmente. É preciso ter cuidado com o que achamos que é a opinião de “todo mundo”.

Nossos eus mais autênticos estão no inbox, nas abas anônimas e nas conversas privadas, não no feed

Depois das inúmeras manifestações públicas, incluindo de CEOs, condenando com razão mais uma provocação vinda de um “agente do caos” corporativo nas últimas semanas, ficaram algumas reflexões:

  • O quanto de aprovação e tapinhas nas costas essa pessoa recebeu de quem pensa igual em canais privados e conversas de portas fechadas?

  • Quantas das pessoas que condenaram o comportamento publicamente (sinalizando virtude e/ou se autopromovendo) não pensam igual ou tem comportamentos idênticos em suas vidas privadas?

  • Quando a gente vai finalmente entender coletivamente que, especialmente nas plataformas digitais, o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença? O que faz esse tipo de estratégia abjeta funcionar é porque uma parte grande das pessoas reage tão previsivelmente quanto ratinhos de laboratório tomando choque, permitindo que se use o ultraje como arma e alavanca de crescimento. 

A tensão entre nossos “eus” públicos e privados também se deslocou para o digital em certa medida. E como sempre foi, é no mundo privado é que mostramos quem somos de verdade e nos sentimos mais livres do julgamento dos outros ou daquilo que é considerado socialmente aceitável. 

O Pedro de Santi, um professor incrível de Psicologia da minha graduação, usou “Ligações Perigosas” para explicar nossos eus públicos e o privados - nunca esqueci a riqueza dessa analogia e me aproprio dela aqui. Se as postagens públicas são como a ópera para os aristocratas europeus de antigamente, mostrados no filme - um momento de mostrar posição social, virtude e poder, uma versão altamente editada de nós mesmos, os canais fechados são as alcovas, o cômodo mais íntimo da casa - onde a vida é muito mais real e sem censura.

Dark social e comunidades públicas anônimas: alcovas digitais?

Uma enormidade de movimentos que parecem ter ficado grandes de repente começaram em canais fechados ou anônimos - do antivacinismo aos red pills. Uma particularidade desses meios é que o pensamento de grupo ganha uma força impressionante, para o bem e para o mal, pela sua capacidade de juntar pessoas que já pensam de forma parecida, potencializando o viés de confirmação e o tribalismo (algo bom de se ter em mente se você tem ou já pensou em ter uma comunidade perene de consumidores / usuários de sua marca). 

Os grupos de WhatsApp são tão influentes como forma de veiculação privada que a plataforma foi forçada a restringir tanto o número máximo de participantes quanto o limite de compartilhamentos e e eles tiveram um papel crítico em momentos da história recente do Brasil. O email, um canal que inúmeros gurus já tentaram declarar morto nas últimas duas décadas, está talvez em sua melhor fase com a popularidade crescente das newsletters. Nos anônimos, a influência dos chans na produção de memes e discurso político é notória e subreddits como r/Wallstreetbets já originaram movimentos relevantes.

Em um contexto em que muitas pessoas hesitam em postar publicamente pelo julgamento dos outros e o medo do cancelamento molda muito das opiniões públicas, é razoável esperar uma migração ainda maior para esses canais.

É por isso que é mais importante do que nunca em um contexto de falsos consensos, ilusões coletivas, e que mais e mais pessoas estão reavaliando a relação ou pontualmente até abandonando as mídias sociais e uma pauta avançando extremamente rápido na limitação ou proibição do uso por crianças e adolescentes que a gente vá além do raso e do fácil. 

O que está atrás da máscara é muito mais revelador. Via Lionsgate | Columbia Pictures

Muito do que acontece de relevante para marcas já acontece longe da superfície. Se você quiser mesmo saber como as pessoas pensam e agem, você precisa de métodos que permitam espiar facetas da vida privada, contrastar discurso com comportamento, entender ritos e regras tácitas, valor simbólico e um monte de outras coisas fundamentais que não aparecem no seu dashboard e nem sempre podem ser metrificadas. E mesmo nessa época tão digital que vivemos, tem marca grande que já entendeu esse movimento e foi parar na HBR.

Bônus: anatomia de uma tendência inventada

Da próxima vez que você tropeçar em uma grande “descoberta” sobre a espécie humana que a melhor evidência forem postagens virais, acione seu pensamento crítico. 

As tradwives vêm sendo mencionadas na imprensa e nas mídias sociais como “uma onda” de esposas que defendem os papéis tradicionais de gênero, que no caso delas, quer dizer voltar aos anos 50 no mundo anglo-saxão. Acontece que elas são literamente um punhado de “praticantes” desse estilo de vida nos EUA e no Reino Unido, incluindo a Ballerina Farm (que é de família mórmon e com isso, não “inventora” desse estilo de vida), a Alena Kate Pettitt e a Estee Williams. As três, em seu tempo, desfrutam tanto da fama temporária com a cobertura da imprensa, quanto do mar de críticas que fazem todas as métricas digitais dispararem - exatamente como o caso do agente do caos citado antes nesse texto.

Existem múltiplas camadas de incentivos perversos que amplificam o alcance desses factóides. As criadoras, usam as previsíveis identificação de um lado e ultraje do outro como forma de autopromoção (de forma intencional ou não, podemos discutir). Não coincidentemente, a Ballerina Farm vende produtos de sua fazenda e a Alena vende livros e cursos de etiqueta. A Estee Williams parece satisfeita com a visibilidade - por agora! Se existe interesse comercial envolvido, é seguro assumir que é performático. Os meios de comunicação, desde sempre, dão palco pensando na audiência e não necessariamente no interesse público, e publicam matérias falando em “movimentos”, mas com n=1  e usando hashtag como evidência.

Notícias Populares fazendo escola no século XXI - via UOL

A novidade mesmo são fornecedores de “insights” mencionando tradwives como “tendência” (por ignorância ou para engajar mais? Vocês decidem.) Começa pela falta absoluta de contexto cultural: ser “tradwifeainda é a regra e não a exceção em vários lugares e comunidades do mundo, em particular nas religiosas, inclusive no Ocidente - em alguns casos por escolha, em outros não. Ninguém se deu ao trabalho de olhar o YouTube ou o TikTok para ver que a maior parte dos conteúdos com muitas visualizações são críticas feitas por mulheres ocidentais, que também são beneficiárias diretas do engajamento pelo ultraje e por inflarem os números relacionados a esse assunto. Os próprios comentários nos vídeos mais vistos são majoritariamente pessoas achando um absurdo, então no final das contas o que gerou mesmo visualização, like, comentário e etc., fora do conteúdo das próprias criadoras são pessoas criticando, não pessoas querendo fazer parte, que é o que poderia sugerir uma tendência. Nada sugere entre seguidores das três ou comentários dos críticos que alguém foi persuadido a seguir esse estilo de vida por causa do que viu!

“Ah mas Rodrigo, elas tem muito seguidores e engajamento, não é possível que não influencie ninguém!” Sim, a Dr. Pimple Popper tem mais de 8 milhões de seguidores só no YouTube, mas não tem ninguém falando que cutucar bereba é tendência.

Marqueteiros e times de insights podem não ter tempo de fazer checagem de fatos, mas sempre podem escolher fontes e fornecedores melhores.

"O problema com os caçadores de tendências é que eles são um pouco como gatos. Os gatos têm mais bastonetes na retina do que nós, o que lhes dá a capacidade de ver mais movimento. O preço que gatos e caçadores de tendências pagam por essa adaptação é que eles não são muito bons em ver coisas quando essas coisas estão paradas. Esta é uma maneira elaborada de dizer que os caçadores de tendências são extremamente responsivos à cultura em movimento e desinteressados pela cultura quando está mais estática.

Na verdade, podemos ir além disso. Os caçadores de tendências são geralmente bastante ineficazes quando se trata dos aspectos mais profundos, lentos e estáticos da cultura. Eles nem parecem saber que esses aspectos existem. Se tivéssemos que arriscar uma métrica, apenas cerca de 30% da nossa cultura é moda e tendência passageira. Isso significa que o melhor da nossa cultura escapa ao alcance do caçador de tendências e da corporação que depende dele/dela."

Grant McCracken, antropólogo cultural

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