Rastro das mudanças E1

Seleção de artigos

Escolhemos alguns dos melhores artigos que apareceram por aqui sobre o exaustivamente coberto tema “mundo pós pandemia”. Num momento de tão pouca clareza no curto prazo faz muito mais sentido dar um passo atrás e olhar as “grandes engrenagens” (macroeconomia, geopolítica, políticas públicas, tecnologia) do que fazer inferências sobre o que é muito particular (o futuro de determinados serviços e produtos) ou muito especulativo (mudanças mais perenes em padrões de escolha e de compra), como fazem alguns relatórios mais generalistas se apoiando no efeito Barnum / Forer

  1. O do Yuval Hahari, o historiador israelense autor de “Sapiens” e “Homo Deus” para o Financial Times - bastante focado no aspecto das políticas públicas e do risco da fragilização das leis sobre privacidade e limites da vigilância

  2. O da Foreign Policy, que consultou 12 especialistas em geopolítica e relações internacionais sobre os potenciais ajustes na ordem mundial acelerados ou acarretados pela pandemia - destaque ao papel dos EUA e da China

  3. O prognóstico do FMI sobre a reação das economias globais pós crise 

  4. Essa série fantástica do Ray Dalio, gestor da Bridgewater Associates (maior hedge fund do mundo), com uma perspectiva tanto histórica quanto de fluxo de capitais

Marca contemporânea: Ministry of Supply

Acompanho o contexto das marcas D2C (direct to consumer) há algum tempo, inclusive já escrevemos sobre este tema entrevistando fundadores de marcas brasileiras. Algumas das coisas mais inovadoras acontecendo em categorias estabelecidas estão vindo de marcas que seguem esse modelo e tudo indica que ele ainda tem muito potencial no Brasil. Uma das que nos chamou a atenção recentemente foi a Ministry of Supply, uma marca fundada nos EUA por engenheiros do MIT com a proposta de fazer roupa para trabalhar com tecidos de alta performance. O primeiro produto da marca foi uma camisa formal de fibras sintéticas com regulação térmica, controle de odores e que não restringe os movimentos como uma camisa comum. Essa camisa, lançada no Kickstarter, levantou 400.000 USD e na época, foi o maior valor conseguido por um produto de vestuário na plataforma. Desde então, eles produzem camisas, calças, paletós, meias e mais recentemente, peças mais casuais como jeans, bermudas, casacos e camisetas. Os tecidos tecnológicos tem diversos benefícios funcionais como não precisarem ser passadas ou lavadas a seco, além de muito mais mobilidade do que roupas feitas da forma tradicional. Mirando em pontos de dor comuns a muitos casos de uso (quem vai trabalhar de bicicleta, quem está sempre viajando, quem não tem tempo ou paciência de cuidar das roupas, quem acha roupa formal desconfortável, etc.), eles conseguem ter um universo de consumidores potenciais bastante grande.Essa ideia de uma marca contemporânea se refere ao quanto conectada ela está com ideias e valores que são os de hoje ou emergentes, de preferência em um ponto de encontro entre eles. Se tendências são vetores, as maiores oportunidades estão onde eles se encontram - estes são alguns dos mais importantes:

  1. Expectativas mais altas em conforto: a força continuada do athleisure no mercado, assim como uma crescente informalização do dress code no ambiente de trabalho, sinalizam um espaço para roupas mais confortáveis e funcionais que não abram mão de uma estética mais clássica ou da elegância.

  2. Na contramão do fast fashion, as ideias de minimalismo (não no sentido estético, mas no de posses, não acumular coisas, ter só o necessário) e do “Buy it for life” empurram as escolhas de consumo na direção de produtos de qualidade mais alta e mais duráveis, assim como de estéticas mais atemporais.

  3. O techwear ganha muita força e traz com ele uma valorização dos aspectos funcionais. Ainda que eles não tenho sido os primeiros a ocuparem esse espaço pautado pela performance têxtil, a Ministry of Supply conseguiu embarcar essas inovações tecnológicas de forma invisível na roupa formal.  

  4. O modelo de venda direta permite que eles vendam produtos mais caros de serem produzidos e superiores, pelo menos no aspecto técnico, a preços comparáveis com marcas tradicionais: uma calça deles custa pouco mais do que uma da Banana Republic, marca do grupo GAP considerada meio do mercado nos EUA.

  5. A tecnologia sempre foi uma prerrogativa da marca e eles acertaram o tom na hora de se comunicar durante a pandemia indo pelo caminho “compre um, doe um”.

Ouvir consumidores: sincretismo das abordagens e um problema de branding

Nas últimas duas décadas, a tarefa fundamental de ouvir consumidores e clientes em crescente digitalização sobre produtos e serviços, deixou de ser exclusividade dos pesquisadores de mercado. Outras disciplinas, formas de pensar e frameworks surgiram e ganharam importância nas empresas: User Experience (UX), Customer Experience (CX), Design de serviços, Design Thinking e Design research ou mesmo mais recentemente até o Design Sprint, apesar das críticas bastante justificadas, tem em seu cerne a escuta e e o entendimento das necessidades e dores dos usuários e consumidores. Tivemos uma série de efeitos colaterais desejáveis com essa evolução. Um deles foi uma valorização maior das abordagens qualitativas, antes mais presas à análise do discurso e situações de laboratório e com isso, às vezes distantes do contexto real de consumo e uso. Essa mudança é fácil de se observar com a valorização de abordagens etnográficas ou de inspiração etnográfica, em detrimento dos tradicionais grupos focais como a abordagem qualitativa padrão. Outro desses efeitos desejáveis foi uma valorização da forma e narrativa nas entregas: hoje em dia os relatórios muito extensos, que dão importância igual a cada detalhe e não no que impacta mais as decisões das empresas já são raros - um rompimento importante com as origens acadêmicas das metodologias, menos focadas na capacidade de síntese e a aplicabilidade imediata das descobertas. Mais uma transformação desejável, ainda em curso, é o desenvolvimento de formas de trabalho mais iterativas  - com os ciclos de desenvolvimento de produtos, principalmente dos digitais, sendo incessante, o fim e o começo de cada projeto fica mais difícil de definir e se faz necessário o aporte da perspectiva do cliente / usuário em todos os momentos. Um dos efeitos colaterais indesejáveis foi o relaxamento (e em alguns casos, abandono) do rigor no processo em nome principalmente da velocidade e da redução de custos. A mentalidade “move fast and break things” de outsiders movidos por uma visão reducionista de eficiência, aliada a uma certa acomodação dos fornecedores tradicionais e facilitada por compradores com pouco conhecimento técnico tornou isso possível, criando uma falsa polarização entre o “novo” e o “velho”. A própria ideia de “pesquisa de mercado” é vista por muitos como algo uncool, lento, caro ou até mesmo ultrapassado. Muitos prestadores de serviços que entrevistam e observam consumidores, visitam pontos de venda e aplicam questionários online não descrevem suas atividades como “pesquisa” por causa dessas associações (ou para que não haja expectativa de rigor?) - aparentemente, pesquisa tem um problema de branding!O grande porém é que nesses processos de escuta, o rigor é o que fundamentalmente separa um processo estruturado de coleta de evidências de um achismo, quer chamemos essa escuta de pesquisa de mercado ou não. Entre todas as ferramentas de marketing, pesquisa é justamente a mais próxima do método científico (formulação e teste de hipóteses, reprodutibilidade, múltiplas estratégias para mitigar viéses, etc.), inclusive no aspecto da pirâmide de evidências. Se não conseguimos subir a pirâmide, o resultado final é um achismo com passos extras, efetivamente destruindo a eficácia e consequentemente o valor desses processos de escuta. O mais curioso é isto acontecer justamente em um momento em que tantas empresas martelam os discursos da tomada de decisões baseadas em dados e a centralidade no consumidor como questão de sobrevivência, além de estarmos testemunhando os efeitos catastróficos de trocar evidências por achismos na esfera da gestão pública. 

Em uma resposta talvez tardia a todas essas transformações, algumas plataformas e prestadores de serviços têm investido em soluções que endereçam as críticas (velocidade e custos principalmente) através da tecnologia e operações mais enxutas justamente para manter o rigor em uma justificada posição central e inegociável. Perguntas sobre controle de viéses, controle de qualidade (certificações ISO 26362 e 20252 para painéis online por exemplo), formas de recrutamento, frequência de abordagem com questionários ou convites para sessões qualitativas ajudam os possíveis compradores a entender quais concessões são feitas para chegar em prazos menores e valores mais competitivos, mas até pela velocidade da transformação do mercado não podemos mais tomar o rigor como certo. Como indivíduos, já preferimos produtos artesanais em diversas categorias porque valorizamos os processos produtivos e ingredientes de melhor qualidade, e com um “ingrediente” que define a entrega como este, não deveria ser diferente, independente da solução escolhida. 

Talvez a carga semântica negativa associada à pesquisa de mercado nunca seja esquecida (mesmo com os avanços recentes e muitos ainda por vir) e passemos a chamar esses processos de escuta por outros nomes, e tudo bem! Modismos no mundo corporativo são inevitáveis e as mudanças, também. O que não vai mudar é a necessidade das marcas de entenderem seus clientes com o mínimo de viéses e ruído possível - e nisto o rigoroso vai ser sempre melhor do que o intuitivo.

Filme: The Trader (2018) 

Como a vida não pode ser só trabalho, segue também uma recomendação de filme que ajuda a dar uma refrescada nas ideias e no algoritmo de recomendação do Netflix.

The Trader (2018) é um documentário curta metragem (só 23 minutinhos) que conta a história de um comerciante itinerante na Georgia que seleciona produtos na capital para vender em troca de batatas nas cidades rurais próximas. O paralelo com o Brasil mais humilde, às vezes igualmente rural e sem recursos mesmo próximo das zonas metropolitanas, é inevitável, apesar das incontáveis diferenças culturais. Além da forma de trabalho do comerciante ser fascinante, é divertido observar como ele encontra a “dose mínima eficaz” de várias etapas de tocar um negócio (pesquisa, negociação, seleção da oferta, comunicação).Em tempos de glamorização da inovação disruptiva movida a capital de risco, é fácil esquecer que a criatividade e a inovação incremental, mesmo com orçamento base zero, ainda funcionam “muito bem, obrigado” e fazem toda a diferença no dia a dia de negócios de todos os portes.

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