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O verdadeiro custo dos atalhos: o preço que pagamos por escolher o caminho mais fácil, rápido e barato

Uma breve história sobre potencial desperdiçado em insights

Já falamos em outras edições sobre uma crescente desconexão entre marketing e o mundo lá fora. A última bomba sobre esse assunto vem do Future of Strategy 2023 da WARC - o texto faz alguns excelentes pontos sobre os porquês dessa desconexão. Apesar de não concordar com todos eles, vamos discutir aqui os que tocam os métodos que usamos para entender o mundo lá fora diretamente.

Além dos fatores contemporâneos que afetam a maioria das pessoas no sentido de decisões piores (bolhas algorítimicas e sociais, o viés de confirmação e a representação distorcida do que é a opinião pública que vem dessas bolhas, dificuldade em dosar o tempo on x off, fragmentação da atenção, etc.), como outros campos de conhecimento, também estamos sob o ataque de todo o tipo de “terraplanismos metodológicos”, simplificações grosseiras e fórmulas mágicas para o sucesso.

A barra do que é considerado “bom o suficiente” baixou em vários pontos

Em estudos quantitativos, os painéis online viraram a regra - o que não é um problema em muitos casos, mas pode criar distorções em outros. É raro um comprador que não se assuste com os valores de campo quantitativo que não seja online ou baseado em painéis - o ancoramento dos preços já aconteceu.  De longe, os painéis são parecidos entre si - a maioria exibe seus números totais de participantes e a viabilidade para diversos públicos; de perto, nem tanto - menos deles são transparentes com suas medidas por qualidade dos dados, especialmente certificações independentes. Além disso, 36 milhões de brasileiros não tem acesso à internet (a maioria no Sudeste!), sem contar os que não sabem da existência dos painéis ou aqueles para quem o tipo de recompensa oferecida não justifica o esforço - e estes, como a gente estuda?

Mais: circulam por aí vários estudos com conclusões mirabolantes feitos apenas com social listening (e não originados das próprias plataformas), muitas vezes mascarando sua falta de representação atrás de grandes números de menções e muitas vezes usando metodologias caixa preta (ou seja, uma boneca russa de caixas pretas já que as próprias plataformas também escondem o ouro) - isso em um contexto de fechamento de dados para raspagem na grande maioria das plataformas, migração cada vez maior da comunicação para canais fechados e dark social, polarização crescente entre criadores e consumidores passivos de conteúdo, grandes números de pessoas fora das mídias sociais e a já velha conhecida desigualdade participativa. A gente fala em representatividade o tempo todo, mas a representatividade estatística é irrelevante? Entender esses falsos “todo mundo” como todo mundo de verdade com certeza abre lacunas enormes em públicos em que essa literácia, acesso ou interesse é menor. Muita gente berra que o Brasil é o país mais influenciado por influenciadores - um estudo recente fala em 44% das pessoas (feito online - será que esse dado seria igual se a coleta fosse presencial em pontos de fluxo ou por telefone?) - sem se preocupar muito com se isso é verdade no seu público ou em sua categoria. A outra pergunta importante é, quem ou o que influencia os outros 56%, que pelo menos de acordo com esse estudo específico, ainda é a maioria?

Os efeitos colaterais da democratização em pesquisa e insights

A ideia de democratização de pesquisa nas empresas era nobre nas intenções (conseguir fazer mais e mais rápido, tirar dos silos e aumentar o impacto nas empresas) e promissora, na teoria. O grande problema foi como aconteceu na prática: em muitos casos foi deixar gente cada vez menos treinada e preparada para exercer uma função altamente técnica e qualificada, usando frameworks e plataformas DIY como “rodinhas de treino” que na melhor das hipóteses padronizam os processos mas que não garantem qualidade, no máximo previsibilidade - ou você é dos que prefere uma pizza industrializada a uma artesanal fermentada naturalmente e com ingredientes frescos? Nessa analogia, os insights são o “valor nutricional” - o resultado da qualidade dos ingredientes e da excelência técnica nos processos. Qualquer um que sugerisse democratizar outros campos de conhecimento como a medicina ou a engenharia civil ensinando a amadores o mínimo possível seria prontamente ridicularizado - os riscos de fazer mal feito foram muito subestimados.

Qualitativa: a Geni dos insights

A pesquisa qualitativa passou anos em uma posição acessória, sendo vista como “menor” (mesmo apesar de ser usada em hard sciences e para produzir conhecimento científico!). Quando a importância do entendimento profundo das pessoas e seus contextos finalmente ganhou massa crítica nas empresas, a gente saiu do paradigma anterior de analisar só discurso (e usar grupo focal para tudo!) e abraçou tanto outros métodos quanto outras lentes. As circunstâncias para a quali brilhar eram perfeitas: além de contornar limitações inerentes da quanti (por exemplo, impor uma abstração versus dar espaço para as pessoas se expressarem nas próprias palavras), o uso combinado a analytics permite uma combinação poderosíssima entre várias camadas de dados atitudinais e comportamentais, entre “o que”, “como” e “porquê” - o caminho estava livre para elevar o conhecimento até a potência máxima! 

via Giphy

Só que não: a demanda ampliada teve um efeito colateral terrível: inundou o mercado de tranqueira - sabe quando chove muito, a sarjeta transborda e a força da água arrasta um monte de lixo? As barreiras de entrada baixas atraíram todo o tipo de oportunistas, despreparados e “métodos” sem qualquer tipo de rigor envolvido como se fazer um estudo fosse simplesmente falar com quaisquer pessoas de qualquer jeito - efeito Dunning Kruger comendo solto.

A destruição do significado de “escuta ativa”,  de “empatia” e de “tendências”

A ascensão e queda de modismos no mundo corporativo também tem um papel - de uns tempos para cá, tanto a ideia de empatia (há mais tempo) quanto a de escuta ativa (mais recentemente) ganharam bastante tração nas empresas. Os efeitos colaterais são aparentes: são usadas em frases de efeito e tratadas como palavras de ordem, papagaiadas por gente que não entende seu significado e vendidas como panacéias - viraram buzzwords. Mas o maior problema mesmo é o “oba oba” de tratar essas duas ideias como suficientes para estudar pessoas - o trabalho qualitativo é fundamentalmente técnico e os aspectos técnicos, de estratégias de mitigação e eliminação de viéses, construir rapport, etc. são tão ou mais importantes do que disposição em ouvir de verdade e se conectar com as emoções, cultura e contexto de quem está sendo ouvido - essas duas coisas são o ponto de partida, o mínimo a ser feito, não o diferencial! Aliás, vale dizer que o conceito que descreve melhor essa ideia é alteridade e não empatia.

Já mencionamos aqui antes o estudo que mostra que que as tendências estão perdendo o significado. Se tudo é tendência (post viral no TikTok, hashtag com crescimento explosivo com um monte de conteúdo nada a ver pegando onda nesse crescimento e que murcha em semanas, dado isolado, opinião de alguém), nada é - onde a gente traça a linha? Se a ideia é usar comportamentos, símbolos e valores emergentes como vantagem competitiva, o rigor, a qualidade e a transparência dos dados e evidências que são usados para determinar o que é e o que não é tendência precisam subir, e muito!

Mas e agora?

A gente sabe que as verbas e os prazos estão circunstancialmente mais curtos e que nem sempre há tempo e dinheiro para fazer escolhas melhores - o próprio Mark Ritson já sugeriu quanto é o bastante como investimento. Mas fica aqui uma provocação: e se ao invés de entender eficiência por escala e automação (otimizar para o volume) a gente entendesse por eficiência operacional (otimizar para a qualidade)? É importante lembrar que qualidade não é sinônimo de marca, de preço relativo alto e muito menos de hype. Eficiência para você é uma rede de fast food com milhares de lojas que entrega igual em todas ou um food truck de comida saudável com estrelas Michelin? Múltiplas categorias já mostraram que fazer melhor com menos também pode acontecer por processos artesanais.

Dá para construir um futuro em insights com menos “calorias vazias” e voltar a elevar a barra novamente? Dá, mas depende do repertório de quem está escolhendo e de mais e melhores perguntas sobre como os dados são gerados. Entenda melhor o que você está consumindo para nutrir suas estratégias - a qualidade delas sobe junto com a elevação do seu “paladar”!

Calling Bullshit - The art of skepticism in a data driven world 

é a nossa recomendação de livro desta edição (que infelizmente só está disponível em inglês e espanhol por enquanto).

Em nosso momento atual de charlatanismo massificado - de criadores de conteúdo fitness que recomendam produtos inócuos ou danosos à saúde, a assessores de investimentos que envolvem os próprios clientes em pirâmides, passando por “especialistas em cultura” que só enxergam as subculturas às quais pertencem e de “tendências” originadas de post viral no TikTok, a loucura de confundir alcance com autoridade parece estar bastante disseminada.

Na frente da tecnologia, as promessas e expectativas infladas são tão parte do jogo quanto a linguagem hiperbólica: tudo é revolucionário, disruptivo, game changer - e essa linguagem raramente é substanciada por fatos.

Neste contexto, a premissa do livro é que está cada vez mais difícil saber o que é verdade e que estamos mal equipados para discriminar o verdadeiro do falso nessa “segunda onda” de bullshit que vem na linguagem da matemática, da ciência e da estatística - e sim, o livro aborda em detalhes as promessas exageradas da IA também. E a saída, de acordo com os autores, esta ao alcance dos leigos e não depende de conhecimento técnico - grande parte do conteúdo é preparar os leitores para reconhecer esses truques assim como os próprios viéses.

Em um cenário em que o pensamento crítico vai ter mais e mais valor como competência profissional, é uma leitura fundamental, em especial no ambiente de marketing, onde muitos profissionais chegam à area com pouca afinidade com Exatas e Estatística e a literácia científica (métodos, viéses, falácias, etc.) é tipicamente baixa - e cada vez mais das soluções passam por esses tópicos! De certa forma, o livro é um sucessor moderno ao excelente “Como mentir com estatística” de 1954.

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