O que marketeiros tem a ganhar pensando como cientistas?

A discussão sobre o “ensimesmamento” do marketing e a despriorização das necessidades de quem está na outra ponta chegou até Cannes este ano. Gary V acha que os marketeiros estão focados demais no passado e no futuro e dando atenção de menos ao presente. Scott Galloway acha que os profissionais deveriam passar menos tempo cuidando de campanhas e mais olhando para o mundo em busca de ideias relevantes para o negócio, focando mais no boring porém eficaz. Será que existe mesmo um descolamento?

“If you’re the CMO that shows up and says ‘I need more budget so that I can do a brand identity study, can spend money on advertising and get invited to great conferences and hang out with people who are more interesting and better looking than me by spending media dollars that are less and less impactful’ then you’re like the second lieutenant in Vietnam — you’re dead in 18 months or less,”

Scott Galloway

MUITO RUÍDO PARA POUCO SINAL

Motivos para esse descolamento não faltam. Hashtags explosivas no Tiktok são confundidas com tendências baseadas em alguma expectativa ou necessidade humana - (trendtrending, uma analogia difícil de traduzir) e não encontram ressonância no “mundo lá fora”. Em um estudo quantitativo feito pelo Reddit com 1500 pessoas em diversos países, 43% das pessoas nunca nem ouviu falar de nenhuma de dez “tendências” bastante discutidas por aí. Nesse mesmo estudo, dois terços das pessoas acham que as marcas estão “forçando a barra” e 70% prefere “que as marcas sirvam minhas necessidades entendendo com o que me importo” ao invés de “que pareçam relevantes se apoiando nas tendências recentes”, o que nos sugere que perseguir hype é o caminho errado para a relevância cultural, além de evidenciar com dados a existência desse descolamento.

“Utter ‘vibe shift’ to the general public, and they’ll think you’re speaking a foreign language.

...Because you are.

And meanwhile, for the 57% of people who have heard of one of the most discussed “trends,” less than half of those people have actually participated in any capacity.

“Trends” as we currently know them are really only for ourselves. That’s fine... but for as long as we recognize they’re untethered from the real needs and desires of real people.

These are empty vessels for us to fill whatever explanations we wish into them. They are our Rorschach tests. Cottagecore is whatever we want it to be... because it doesn’t actually exist.

The critical caveat here is that understanding culture remains a priority, but the nuance is mistaking “trending” with substantial ideas worthy of strategy and investment. We must continue to study these signals, but with a dose of skepticism and healthy distance.’

Matt Klein, head of global foresight no Reddit

O hype tecnológico também está a todo vapor. Promessas sem substância e previsões improváveis são aceitas a valor de face e os mesmos oráculos sem evidências e com históricos questionáveis continuam sendo ouvidos, sem qualquer tipo de represália quando falham. Mesmo as pautas que são potencialmente transformadoras deveriam inspirar mais reflexão do que euforia.

PRESSÃO INTERNA E (AUTO) PRECONCEITO

A pressão do lado de dentro também é forte - o tempo de cadeira dos CMOs continua caindo. Marketing ainda é em grande parte uma especialização profundamente etarista e obcecada com a juventude, tanto como público quanto como profissionais. O surgimento dos primeiros cabelos brancos nas lideranças às vezes coincide com a tentação de fazer coisas que sinalizem jovialidade aos pares e ao mercado, porque a noção absurda de que maturidade é sinônimo de datado ou antiquado ainda é muito forte - a quem esse comportamento realmente serve?

Já há muito sabemos (ou pelo menos deveríamos saber!) que a influência e poder de compra dos jovens em diversas categorias foram superestimados e que esse mito está na contramão da História, já que estamos em um momento de reinvenção radical do significado de amadurecer e envelhecer, empurrado por uma curva demográfica que vai aumentar ainda mais a importância dos mais velhos como mercado.

Nesse turbilhão movido a FOMO, clickbait e medo de perder relevância (e muita gente ganhando dinheiro com falsas urgências), as prioridades de quem mantem as luzes acesas muitas vezes ficam em segundo plano. Parece especialmente irracional quando comparamos custo de aquisição com custos de retenção, ainda mais se consideramos dados de que as supostas vantagens de ser first mover podem ser mais mito que verdade.

Ao mesmo tempo, muitas das marcas que mais admiramos, inclusive como consumidores, são as obsessivamente focadas no cliente, as que concentram seus esforços prioritariamente em criar soluções que realmente atendem seus públicos em cada ponto de contato - uma dissonância cognitiva gigantesca. E agora?

PENSAMENTO SISTÊMICO E BASEADO EM EVIDÊNCIAS

A ideia de pensar como um designer (justificadamente) explodiu nas últimas décadas, mas no momento em que estamos, de grandes transformações em curso com resultados imprevisíveis e muita poluição informacional, precisamos pensar mais como cientistas, já que entender o contexto de forma sistêmica se tornou uma vantagem competitiva gigantesca exatamente porque está ficando mais difícil.

Cientistas precisam estar constantemente cientes dos limites do seu conhecimento. Eles precisam duvidar do que sabem, serem curiosos sobre o que não sabem e atualizarem seus pontos de vista com base em novos dados. Eles não se preocupam só com os dados, mas também com os processos e circunstâncias que levaram até eles. Eles precisam conhecer viéses cognitivos e falácias lógicas e entender como seu lugar no mundo influencia sua compreensão da realidade.

Se esta forma de ver o mundo soa como job description de alguém em insights, pesquisa, entendimento do ser humano e do mercado, a tendência preocupante à “amadorização” e precarização dessa função em algumas empresas é especialmente preocupante e parece ir na contramão do que deveria ser prioridade absoluta.

FURAR BOLHAS COMO ESFORÇO CONSTANTE E O RISCO SUBESTIMADO DO FALSO CONSENSO

Mesmo com a mentalidade certa, os esforços precisam ser constantes. É um pouco como terapia, que fazemos em parte para conseguir enxergar nossos próprios pontos cegos e reconhecer nossos padrões de comportamento. Como na terapia, é fundamental ter interlocutores profissionais e treinados. Tem muito sobre nós mesmos que não conseguimos ver de fora e simplesmente circular em contextos diversos não é o bastante. Bons parceiros externos são imunes ao consenso artificial que permeia tantas empresas.

É justamente nessas trocas mediadas por visões do “mundo real” dos clientes, em que esses descolamentos ficam mais aparentes e as bolhas realmente são furadas - desde sejam feitas observando e ouvindo pessoas de verdade, de forma científica e rigorosa, justamente para evitar o auto engano ou só reforçar opiniões pré existentes. Quais das suas convicções sobre seus clientes você já questionou hoje?

Artigos

Mais sobre poluição informacional

Uma onda de desinformação sobre marcas no TikTok - principalmente relacionada a críticas políticas e boicotes, afeta marcas como Heineken, Barilla e Balenciaga. Os resultados aparecem mesmo em buscas neutras, como pelo próprio nome da marca.

O “esmer***mento” iminente da internet - como as ferramentas generativas estão sendo usadas para produzir livros de baixa qualidade e sites inteiros, em uma dinâmica que já interfere nos mecanismos de busca, com resultados das alucinações dos modelos em primeiro lugar em buscas no Google. Com a velocidade de proliferação desse tipo de conteúdo, encontrar informações confiáveis e de qualidade deve virar um problema tanto para usuários quanto para os próprios motores de busca.

Mais sobre o clima de incerteza

A fase esquisita e difícil de prever na economia - A certeza que movimentos como as mudanças demográficas drásticas, mudança climática, desglobalização e o impacto impossível de antever da IA trazem consigo mais incerteza pela frente.

A entrevista do Sam Altman na The Atlantic - Além das explicações bem acessíveis sobre o que são redes neurais e como funcionam, alguns destaques:

‘In a Q&A last year, he acknowledged that AI could be “really terrible” for society and said that we have to plan against the worst possibilities. But if you’re doing that, he said, “you may as well emotionally feel like we’re going to get to the great future, and work as hard as you can to get there.’

‘According to a recent survey, only half of natural-language-processing researchers are convinced that an AI like GPT-4 could grasp the meaning of language, or have an internal model of the world that could someday serve as the core of a superintelligence. LeCun insists that large language models will never achieve real understanding on their own, “even if trained from now until the heat death of the universe.”’

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