• Rastro das Mudanças
  • Posts
  • O preço de viver na bolha: como os repertórios pasteurizados limitam nossos acertos

O preço de viver na bolha: como os repertórios pasteurizados limitam nossos acertos

Se "o futuro já chegou" em tantos mercados, porque só ouvimos as mesmas pessoas?

Bom lembrar que a adoçao de qualquer tecnologia passa por pessoas

Estamos em um momento de valorização extrema da tecnologia e de suas possibilidades. As críticas a esta visão de mundo em que a tecnologia é o remédio, não importa qual seja o problema estão se multiplicando (incluindo vaias em eventos de inovação, que teoricamente é quando esse time está jogando em casa).

O que essa narrativa dominante parece negar ou ignorar é que as tecnologias precisam se conectar às necessidades ou expectativas das pessoas e tem uma parte crescente da opinião pública global mais cética, pessimista ou que não gosta de para onde as coisas estão indo. Para ver como isso se mostra verdade o tempo todo, é só lembrar de alguns fiascos recentes de ideias celebradas pelos entusiastas, mas irrelevantes para o público em geral, ou de várias mortes anunciadas (como a dos táxis , do vinil ou mesmo da pesquisa quantitativa) que nunca se concretizaram e revelam mais sobre as intenções dos “aspirantes a matador” do que sobre a dinâmica do mercado em si. Esse texto é um argumento a favor de que a causa raiz desses enganos é o famoso viés do Falso Consenso - que é quando a gente acha que a nossa bolha ou o nosso cercadinho são a opinião dominante.

ENXERGAR FORA DE NOSSAS BOLHAS COMEÇA POR RECONHECER QUE ESTAMOS DENTRO DELAS

Temos inúmeros fatores no Brasil que potencializam a formação de bolhas de visão de mundo no mundo corporativo: o nível socioeconômico díspar em relação ao resto do país, a baixa representação nas empresas de diversos públicos cada vez mais vocais sobre seus pontos de vista, o consumo de mídias, autores e produtores de conteúdo similares - todas circunstâncias que potencializam pontos cegos ao invés de mitigá-los. Até alguns eventos estão se transformando em uma espécie de Trancoso tecnológica, em um desvio de propósito quase cômico: o que deveria ser um lugar onde um grupo elitizado vai para romper suas rotinas, explorar novos valores e ideias e “abrir a mente” vira o lugar onde encontram as mesmas pessoas, consomem e falam das mesmas coisas e a sinalização do pertencimento a esse grupo é mais importante do que o objetivo original, que era justamente romper com o mentalidade de manada. Se o repertório é a matéria prima da criatividade e do pensamento estratégico, precisamos levar a expansão do nosso mais a sério. 

O MUNDO ESTÁ CHEIO DE EXPERIMENTOS FUTURISTAS ACONTECENDO FORA DOS GRANDES PALCOS E AUDIÊNCIAS - É SÓ SABER ONDE PROCURAR

Ideias e mercados amadurecem em ritmos desiguais em ambientes diferentes. Para inúmeros problemas e desafios que estamos enfrentando hoje, em algum lugar do mundo, em um outro setor ou outra categoria, talvez com um público menor e mais específico, desafios parecidos em contextos mais maduros já estão sendo endereçados de forma genial, e podem ser usados como inspiração e aprendizado. As metáforas são uma das ferramentas de aprendizado mais poderosas que existem.

Só que para capturar essas oportunidades, é preciso ir além das referências batidas e dominantes (quase sempre vindas do mundo anglófono e em menor grau, do desenvolvido) e cruzar as barreiras da linguagem e da cultura. Sim, dá mais trabalho, mas as recompensas também são maiores. O futuro “mal distribuído” ainda é profundamente subvalorizado e subaproveitado, a gente só precisa ter a ousadia de ir buscar além.

Por mais que o Brasil tenha inúmeras singularidades e seja de fato vanguarda em alguns assuntos (como adoção de serviços financeiros digitais e digitalização de serviços públicos), negar a permeabilidade dos brasileiros ao que acontece fora (ainda que muitas vezes “traduzido” e resignificado) é ingênuo e deixar de aprender com isso, um desperdício enorme. Isso sem falar nas vozes menos ouvidas no Brasil, mas essa é uma conversa para outro dia.

Em um exemplo bem prático, boa parte do mundo está envelhecendo rapidamente, inclusive o Brasil, que terá sua população economicamente ativa predominantemente na meia idade em poucos anos - isso não é uma projeção, é um fato demográfico. E se ao invés de esperar que algum dos autores best sellers ou palestrantes internacionais americanos que todo mundo conhece escrever algo sobre que vai ser papagaiado pelos corredores das grandes empresas, por que não olhamos para o que já está sendo feito em países em que boa parte da população é mais velha hoje? Como o caso do Jumbo, um supermercado holandês, que transformou a ida à loja em uma oportunidade de socialização para os mais velhos, melhorando simultaneamente a experiência de pessoas com mais e menos idade em seus caixas.

Quer pensar em formas de ampliar seu repertório para resolver desafios e problemas específicos de seu mercado indo além dos lugares comuns e clickbaits que estão nos engolindo? Dá um oi aqui.

Artigos: desconstruindo balelas com dados

Você também cansou de post, relatório e matéria que tortura os dados para conseguir chegar em um título impactante que vire clique? Vem com a gente!

Balela 1: o que acontece nas redes representa a opinião da maioria e pode ser considerado uma amostra representativa do mundo fora delas.

A gente já falou inúmeras vezes por aqui da desigualdade participativa. Nos EUA, o Pew Research Center demonstrou com dados super recentes como essa ideia se aplica ao TikTok por lá.

Essa é uma demonstração mais visual, mas há muitas outras evidências dessa não-representatividade e esse é um assunto quente nas Ciências Sociais.

Essa é talvez uma das balelas mais danosas de todas nos tempos que vivemos. O problema não é uma pequena minoria produzir desproporcionalmente a vasta maioria do conteúdo, mas sim as opiniões ruidosas dessas minorias distorcerem o que é percebido como opinião da maioria, porque afinal as redes são onde “todo mundo” está.

Não podemos mais continuar acreditando que hashtags explosivas significam tendência e confundindo um interesse temporário em um assunto com uma efetiva mudança de comportamento ou de valores, em onda (essa sim, uma definição melhor de tendência), de preferência embasadas por dados de qualidade mais alta do que “vi o povo discutindo no X” e evidências anedóticas similares. 

Em um ótimo exemplo prático disso, o NYT há pouco publicou uma matéria falando que o aparelho da vez para a geração Z é uma câmera de 20 anos atrás se embasando em alguns depoimentos de jovens, engenheiros de obra pronta e fotos de influenciadoras.

Carina Seah, PhD on X: "That conspiracy meme except it's me and a nephron https://t.co/bDYm4WEVQo" / X

A Ypulse, uma consultoria e empresa de pesquisa especializada no mercado jovem americano, prontamente mostrou com dados que não é bem assim. Promete que você vai lembrar dessa história a próxima vez que você tropeçar em uma “tendência” baseada em hashtag viral no TikTok? 

Balela 2: As buscas no TikTok estão substituindo as do Google na geração Z.

O primeiro passo razoável com uma afirmação dessas é sempre avaliar os dados que a embasam e a qualidade deles. O Thomas Haynes já fez esse trabalho muitíssimo bem, mostrando que são dois os estudos que referenciam esse factóide. O primeiro, da Her Campus Media, uma empresa de marketing para universitárias, foi feito com um questionário distribuído por newsletter e pelas mídias sociais (enquete ≠ pesquisa), só nos EUA, cujas respostas são de mulheres (97%) e universitárias (71%), ou seja, nada representativa. O segundo, da Adobe, que apesar de mostrar que só 1 em cada 10 participantes prefere o TikTok do que o Google para buscas teve sua interpretação totalmente equivocada e essa interpretação equivocada se multiplicou em inúmeros meios de comunicação que passaram o erro adiante sem verificar (ou acharam que ia dar mais cliques se fosse mantido).

A imprensa brasileira mordeu a isca em massa e diversos meios republicaram, citando como fontes os mesmos estudos apontados aqui e, jogando mais sal na ferida tem algumas pérolas do tipo “A pesquisa da Her Campus Media, realizada em agosto de 2023, foi feita nos Estados Unidos, mas indica tendências que podem ser observadas no público brasileiro.” Podem como e por quem, jornalista? Baseado em qual estudo, feito de qual forma?

Isso sem nem entrar no mérito do tipo de buscas que estamos falando: se eu quero achar um tutorial de como dar um nó em gravata, onde procuro? Se quero achar um restaurante chinês legal perto de mim, onde procuro?

Como diria nosso “muso” Carl Sagan, alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias - estaremos de olho quando ou se aparecerem - essas claramente passaram longe. Literácia em dados é uma pauta urgente!

Balela 3: A geração Alpha vai ser a maior de todas. 

Esse papo de que a geração Alpha, a que vem em seguida da Z, será a maior de todos os tempos é a famosa “verdade parcial” - pode ser verdade apenas quando olhamos pelo total global e dependendo de onde a gente considera que a Z acaba e a Alpha começa e termina (alerta de spoiler: sempre é arbitrário!), porque a natalidade e a população de crianças e adolescentes está muito concentrada em alguns países e regiões do mundo.

Certamente não é verdade no mundo todo e é especialmente inverdadeiro no Ocidente, no mundo desenvolvido e nos maiores países da América Latina, inclusive no Brasil. Além disso, de acordo com o Census Bureau americano, chegamos no pico do número de crianças em 2017, ou seja, daqui para frente o número total de crianças está diminuindo e não aumentando, o que obviamente impacta o tamanho máximo potencial (se consideramos que as gerações tipicamente tem entre 15-20 anos de intervalo) do que está sendo chamando de geração Alpha.

Reply

or to participate.