• Rastro das Mudanças
  • Posts
  • O impacto cultural dos feeds, a ordem econômica em transformação e o valor científico da pesquisa qualitativa

O impacto cultural dos feeds, a ordem econômica em transformação e o valor científico da pesquisa qualitativa

Como chegamos até aqui?

Uma série de artigos recentes sobre como nossa migração da mídia massiva para os feeds individualizados mediados por “likes” mudou nossa forma de consumir e produzir cultura e entender o mundo

Polarização, realidades não compartilhadas, fragmentação de um sentido de verdade universal, estilhaçamento do tecido social - Why the Past 10 Years of American Life Have Been Uniquely Stupid

conflict – We All Deserve Better

Jonathan Haidt, psicólogo social e professor da universidade na Stern School of Business da Universidade de Nova Iorque em uma análise afiada e controversa sobre polarização, desinformação e o papel das mídias digitais na erosão da confiança nas instituições e em fatos estabelecidos. 

Fragmentação das estéticas dominantes e “encurtamento” das tendências estéticas - Trends are dead

A vintage-like cartoon drawing of a woman in a strapless dress, next to various articles of clothing.

A regra dos 20 anos foi historicamente um excelente preditor de tendências emergentes na moda, na arte e em design de interiores desde o pós Guerra. Ainda que ela continue aplicável em certa medida, um dos outros desdobramentos da crescente substituição das mídias de massa por feeds individualizados é uma fragmentação maior das tendências estéticas (mais caminhos estéticos contemporâneos ao mesmo tempo e ausência de um sentido estético único como o da “época”) e duração menor desses ciclos, o que explica marcas como a Shein terem um ritmo de lançamento de produtos tão acelerado e muitas marcas estarem focando seus esforços em produtos mais atemporais, até pela incapacidade operacional de acompanhar essa velocidade. 

A possibilidade de engajamento guia formatos de produção de conteúdo - How the Internet Turned Us Into Content Machines

Image may contain: Computer Keyboard, Electronics, Computer Hardware, Hardware, Keyboard, and Computer

Quem trabalha com mídias sociais sabe que o sucesso de uma determinada postagem é intimamente relacionado com o tipo de emoções que ela desperta, inclusive quando elas são negativas. 

Como o volume de engajamento é o que determina a visibilidade e a chance de que um determinado conteúdo seja descoberto e isto é um elemento crítico para o sucesso de pessoas, arte e empresas, existe cada vez mais conteúdo sendo produzido e é cada vez mais difícil construir audiência e gerar engajamento, a não ser para quem já tem um público significativo - é como a gravidade: mais massa gera mais força de atração. 

De acordo com Kate Eichhorn, uma das autoras mencionadas no texto, a consequência disso é um volume cada vez maior de conteúdos banais e extremos, o que ela descreve como “uma corrida para o abismo” e como consequência, a desconstrução de formatos e gêneros porque o engajamento é a métrica mais importante.

Novas dinâmicas pós algorítmicas na música

Infographic: New Music Plays Second Fiddle to Catalog Titles | Statista

Essa desconstrução dos formatos e dos gêneros tem efeitos bem visíveis no mundo da música - os feats. (quando um artista chama outro para participar em uma faixa sua) são onipresentes e uma estratégia para combinar o público de diferentes artistas, cruzando linhas entre geografias e gêneros (rap e K-pop por exemplo) . Essa fusão de gêneros parece ser um pré-requisito para a criação de hits contemporâneos até pelo aspecto da expansão de público e visibilidade ampliada.

Ao mesmo tempo, os álbuns como formato estão cada vez menos relevantes - as músicas individuais são como a grande maioria das pessoas consomem música, tanto que muitos artistas  já não agrupam seus lançamentos em álbuns e procuram formatos alternativos como playlists, vídeos com as letras ou simplesmente tentam manter um fluxo constante de lançamentos individuais.

Há também um aumento da participação dos artistas “intermediários”, que são muito mais numerosos que as super estrelas, algo possivelmente relacionado tanto à fragmentação estética quanto às recomendações automatizadas e sugere que o mainstream diminuiu em  volume

Além disso, pelo menos nos EUA, está se ouvindo mais música velha do que nova cada vez mais. O índice MRC (que mede o consumo de música por plataformas de streaming) existe desde 2008 e os títulos de catálogo (músicas lançadas há 18 meses ou mais) chegam a quase 70% do todo, subindo de 62,8% em dois anos. Parte disso se explica pelo crescimento das plataformas de streaming entre pessoas de mais idade, mas será que não está relacionado também com essa fragmentação das estéticas ou uma ressaca do contemporâneo mais “pasteurizado”?

Princípios para a ordem mundial em transformação - Ray Dalio

O livro “Princípios para a ordem mundial em transformação” de Ray Dalio, gestor da Bridgewater Associates que é maior hedge fund do mundo, foi adaptado para um video de 44 minutos que já tem mais de 18 milhões de visualizações no YouTube. 

O livro e o video abordam os estudos de Dalio sobre os ciclos de expansão e declínio das grandes potências globais históricas ( em especial dos holandeses, britânicos, americanos e chineses), descrevendo quais fatores e sinais determinam em que ponto do ciclo (ascensão, topo e declínio) estamos e é uma forma muito interessante de entender o nosso momento histórico global e os desafios macroeconômicos que surgiriam com a diminuição da importância ou até eventual substituição do dólar como moeda de reserva. Dalio dá uma aula magna em reconhecimento de padrões, a habilidade mais crítica para o entendimento de tendências em todos os campos de conhecimento.

Produto contemporâneo: Notion

O Notion é uma ferramenta digital que explodiu recentemente em popularidade (de 1 milhão de usuários em 2019 a 30 milhões em 2022) e em valor de mercado (cerca de US$ 10 bilhões neste ano) em parte por ter uma imensa gama de usos possíveis, servindo tanto a estudantes buscando organizar seus aprendizados, indivíduos interessados em organizar suas tarefas e referências ou criar um segundo cérebro online quanto empresas de todos os portes (algumas bastante conhecidas como a Adobe) que queiram fazer gestão de projetos, wikis, pipelines, CRMs, kanban boards, calendários de conteúdo e etc.

O Notion alia blocos de notas e bancos de dados dinâmicos a muitas formas possíveis de visualização (tabelas, listas, calendários, galerias, etc.), o que permite que os usuários criem de forma muito simples soluções que funcionem para eles, independente do nível de complexidade, usando uma lógica no code (não é necessário saber programar), então parte de seu valor está em se adequar ao que os usuários querem criar ao invés de impor uma determinada lógica de trabalho ou de funcionamento - é como um Lego de blocos de informação e visualizações.

Existe uma comunidade bastante engajada de usuários e criadores de conteúdo que além de sugerirem novos usos possíveis para a plataforma e compartilharem suas criações, podem criar modelos personalizados para serem vendidos a outros usuários .

Pesquisa qualitativa é método científico e porque isso importa para empresas

Originada e amplamente usada em estudos científicos de diversos campos de conhecimento (inclusive em ciências exatas e naturais ), a pesquisa qualitativa, apesar de ser usada em marketing desde os anos 40, quando focus groups eram usados para avaliar eficácia de anúncios em novelas de rádio, ainda é muito mal compreendida pelo público em geral, mesmo entre alguns responsáveis pela compra e uso de estudos com consumidores. 

Com um número crescente de empresas entendendo a importância deste tipo de pesquisa e a apropriação de algumas de suas metodologias por disciplinas fora da pesquisa de mercado, seu valor científico foi relativizado e esquecido em alguns círculos, o que é bastante problemático, dado que o rigor científico junto com a fundamentação técnica são o que assegura a qualidade e a transferibilidade das descobertas, tornando-as incomparáveis com qualquer alternativa feita informalmente.

Apesar disso, as crenças desinformadas são muito comuns, como “é simplesmente perguntar as coisas para as pessoas” ou “qualquer um pode fazer”, ou até mesmo as mais cínicas, como se esconder atrás de frameworks, “receitas de bolo” ou ideias simplistas como “escuta profunda” para abrir mão dos fundamentos teóricos e técnicos que fazem o trabalho mais árduo e eventualmente mais lento e caro, mas confiável e baseado no método científico. Se pesquisas são feitas para melhorar a tomada de decisão em ambientes de negócio altamente competitivos, “curandeirismo” ao invés de ciência precisa ser considerado inaceitável.

O efeito Dunning-Kruger: quanto mais incompetente uma pessoa for, menos consciente disso ela será? - Blog do Prof. H

Em defesa da pesquisa qualitativa “raiz”, trouxemos três checklists para ajudar em suas próximas experiências:

Alguns equívocos comuns:

  • Pesquisa qualitativa não serve como “cheiro” de incidência de qualquer fenômeno; as amostras são pequenas (o que deixaria a margem de erro muito alta) e diferentemente do quantitativo, as perguntas não são necessariamente sempre feitas da mesma forma como em um questionário fechado, o que tira comparabilidade em larga escala. Estamos tentando descobrir o que, por que e como, não quanto - este último requer uma abordagem quantitativa.

  • Pesquisa qualitativa não “valida” nada - ela suporta formulação de hipóteses e é uma excelente forma de conseguir uma avaliação ou entendimento de algo (produto, comunicação, experiência etc.) nas palavras das próprias pessoas

Como explicar para um cliente interno o valor de uma pesquisa qualitativa:

  • Consegue mapear e entender em profundidade os comportamentos, ideias, ritos, símbolos, sentimentos, valores e justificativas que existem em um nível de detalhe e nuance impossível de ser capturado quantitativamente

  • Descreve em detalhes o que acontece, usando a lógica e a linguagem do participante, não adequando os participantes à nossa própria lógica como acontece no quantitativo

  • Formula e melhora hipóteses que podem ser testadas quantitativamente em outros momentos

  • Chega aos porquês declarados e em alguns casos, comparar a racionalização com os comportamentos que acontecem

No que prestar atenção em termos de qualidade:

  • Prefira trabalhar com pesquisadores “ambidestros” metodologicamente (que dominem tanto quali e quanti) porque no geral estão mais dispostos a reconhecer as limitações de cada uma das abordagens. Não existe superioridade inerente entre elas, existem casos distintos de uso.

  • Conheça a experiência e educação formal de quem vai conduzir os processos

  • Pergunte se e como codificam os dados (a codificação é o processo de transcrever e agrupar em temas e padrões os depoimentos ou outros dados coletados com os participantes); não codificar pode ser uma bandeira vermelha, especialmente em estudos de escala maior ou mais longos - se a análise parte só de anotações ou do que o pesquisador se lembra, a chance perda de qualidade é alta porque os depoimentos mais memoráveis podem ser sobrerepresentados (viéses de memória).

  • Avalie as estratégias de recrutamento de participantes e controles que estão sendo usados para garantir que as pessoas abordadas são quem dizem ser; recrutamento por indicação ou usando pessoas conhecidas só é aceitável em universos pequenos ou muito específicos (ex.: gerentes de logística, pacientes de doenças raras, etc.) porque o risco de sobrerepresentar um grupo social ou de conhecidos entre si é alto. A qualidade do recrutamento é um dos pontos mais críticos para o rigor. 

  • Avalie estratégias de reconhecimento e controle de viéses (ex.: perguntas com respostas socialmente desejáveis como “Você está disposto a gastar mais por produtos sustentáveis?” sem verificar se o comportamento reflete o discurso, viés de confirmação, etc.)

  • Apresentações e análises mencionando valores numéricos diretamente (ex.: 5 de 8 pessoas acreditam que…), ou pior ainda, usando porcentagens é bandeira vermelha - essa prática induz ao erro porque sugere validade estatística e/ou replicabilidade quantitativa. O mais correto é usar palavras como minoria, maioria, casos isolados, etc.

  • Cuidado com promessas exageradas em Processamento de Linguagem Natural (NLP) - mesmo as melhores ferramentas ainda são pouco previsíveis nos resultados e ainda requerem muito trabalho analítico humano

Reply

or to participate.