Nostalgia: consequência do momento atual ou só renovação do ciclo?

Um exemplo prático de como confundir correlação com causa leva a decisões piores

Estamos em um momento histórico em que muitos olham para o futuro com olhos mais preocupados ou pessimistas. Um estudo global recente com uma amostra super robusta mostrou que perto de 60% das pessoas teme que o avanço tecnológico esteja mudando nossas vidas para pior. Não são só as pessoas comuns - um painel de 305 experts de diversos campos de conhecimento ligados à tecnologia entrevistados pelo Pew Research nos EUA está 37% mais receoso do que empolgado e 42% está tão receoso quanto empolgado com os desenvolvimentos tecnológicos esperados para a próxima década. Também de acordo com Pew Research, os adultos, pelo menos nos EUA, são nostálgicos da internet de antes, menos tóxica e polarizada. No Brasil, 6 de cada 10 pessoas acham que podem ter seus empregos substituídos pela IA nos próximos 5 anos. Será que esse pessimismo está relacionado a mais vontade de olhar para trás do que para frente?

Você talvez tenha notado um volume maior de discussões e artigos sobre nostalgia recentemente, como se ela fosse uma nova onda e não algo que sempre foi presente - talvez em parte empurrado pelo “furacão” Barbie. Circularam inclusive algumas textos ligando essa suposta onda a esse momento mais pessimista, mas sem qualquer dado que mostre correlação, que dirá causalidade, entre as duas coisas.

O problema de tratar como onda é o tipo de ação que esse entendimento guia. Entender como onda nos condiciona a ser reativo - aproveitar um movimento que já está em curso e que muitos estão vendo, o que muitas vezes limita a capacidade de criar valor, relevância e diferenciação. Nada contra fazer promoções ou posts de oportunidade em cima de trending topics, o que não é razoável é fundamentar a estratégia de marca, produto e comunicação nisso.

Em contrapartida, tratar como ciclo permite que as marcas se antecipem. Se esse ciclo se repete desde sempre e o que muda são os objetos da nostalgia, para as marcas, o que parecer fazer mais sentido é mapear quais elementos, linguagens, códigos visuais e produtos despertam memórias afetivas nos mais velhos e ao mesmo tempo, uma sensação de exotismo e autenticidade nos mais jovens que não viveram ou tem apenas uma memória distante de um determinado período. O ideal é fazer isso com dados primários falando com o público alvo atual ou desejado para garantir que são realmente aderentes ao invés de só observar uma bolha de usuários mais vocais nas redes que pode não ter nada a ver com o alvo. Por exemplo, podemos mapear referências e que tipo de emoções elas despertam com um estudo qualitativo e em seguida, chegar às que tem maior apelo universal com uma metodologia quantitativa de escolha ranqueada como MaxDiff.

Novas manifestações de nostalgia simplesmente não são a mesma coisa do que mais nostalgia ou a nostalgia em si como uma onda. Esses ciclos de rejeição do padrão anterior (da calça skinny que vira cringe ao fugere urbem do Arcadismo que vira o culto à vida na cidade no Romantismo) assim como o resgate de comportamentos, estéticas e ideias pregressas para criar coisas novas (do rockabilly revival que nos anos 70/80 reinterpretou os 50, passando pelas referências super oitentistas da moda dos anos 00, pelo apelo multigeracional de Stranger Things ou mesmo pela reemergência do City Pop mais de 30 anos depois do seu ápice), são indissociáveis da natureza humana e repetidos inúmeras vezes - a própria ideia de Zeitgeist se origina daí. Quem tem mais de 35 anos hoje invariavelmente viu coisas da própria na infância ou adolescência sendo ressignificadas, os mais velhos já passaram por isso múltiplas vezes - e isso acontece em uma enormidade de categorias, passando por eletrônicos de consumo, design gráfico, design de interiores e muitos outras além da moda, onde isso é mais óbvio.

Um livro maravilhoso sobre esse assunto é o Retromania, que lá em 2011, já apontava a música popular de estar obcecada pelo próprio passado. Um dos insights preciosos do livro para entender a cultura de hoje é que diferentemente de antes, alguns movimentos e estéticas “não vão mais embora” (ex. como o hard rock deu espaço ao grunge nos anos 90 ou, do outro lado o poder de permanência do estilo midcentury modern) e mantém públicos cativos, algo que desafia a própria ideia de “datado” - o que o autor do livro, focado principalmente na música, chama de “música velha sendo produzida por gente nova”.

Ainda que previsível na sua recorrência, a nostalgia de hoje difere em pontos importantes das de antes:

  • Cultura mediada por algoritmos = feeds individualizados = maior fragmentação =  mais estéticas correntes simultâneas, mais espaço para nichos economicamente viáveis, mais sobreposição entre esses nichos e menos “monocultura” e mainstream

  • Como consequência, existe menos da dicotomia cultura versus contracultura, mainstream versus underground de antigamente

Nesses tempos em que muitos de nós olham para o futuro de forma mais pessimista, a nostalgia não necessariamente é uma negação do presente em favor do passado (desde que a gente não caia na armadilha do declinismo), mas uma força geradora de vínculos emocionais (e consequentemente econômicos) poderosíssimos, além de poder ser um primeiro passo na direção da criação de futuros que proponham valores e estéticas que não os de agora, desde que a gente entenda o que está sendo questionado. O que parece saudosismo na superfície podem ser novos caminhos sendo gestados.

Marca contemporânea: Nothing

Em uma edição falando de como criar o novo à partir do pregresso, a britânica Nothing é uma ótima referência de marca contemporânea, tanto em produtos quanto na visão. Foi fundada em 2021 por Carl Pei, co-fundador da fabricante de eletrônicos OnePlus e investida por algumas celebridades do mundo da tecnologia como Steve Huffman (CEO e cofundador do Reddit) e Paddy Cosgrava (fundador do Web Summit). Pei é famoso por seus videos de reação aos lançamentos da concorrência no YouTube e diz que sua missão é tornar a tecnologia divertida novamente e restaurar a empolgação que existia com as novidades tecnológicas há alguns anos atrás.

A Nothing entrou primeiro no mercado com fones sem fio e celulares, dois mercados que vivem uma relativa estagnação estética e em que a competição acontece mais e mais em preço e características técnicas (o que pelo menos no caso dos celulares contribui para um ritmo de substituição cada vez mais lento globalmente e no Brasil), mas ainda assim com diversas barreiras de entrada.

Os produtos da Nothing miram na diferenciação através do design, rompendo com a estética dominante com hardware aparente usando transparência, e a tipografia e alguns painéis feitos com matriz de pontos (algo ao mesmo tempo familiar e novo). Além disso, nos telefones, as luzes na parte traseira tem vários usos possíveis, respondem a condições específicas e podem ser customizadas. As interfaces digitais, propositalmente monocromáticas por padrão, são pensadas para conduzirem ao uso intencional e focado (ao invés de compulsivo) do aparelho.

Além dos produtos mais premium, este ano lançaram uma submarca de entrada, a CMF (Color, Material and Finish), com fones, carregadores e um smartwatch, com preços bastante competitivos em relação à concorrência. 

Na contramão do pensamento de empresas financiadas com capital de risco, o foco primário é entrar no mercado em categorias estabelecidas para ter faturamento suficiente para movimentos mais ousados mais para a frente - vale a pena acompanhar os próximos passos da Nothing!

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